quinta-feira, 18 de abril de 2024

O espelho esquecido no porão

        O corre-corre diário faz as pessoas se esquecerem muitas vezes de olhar internamente, de dar aquele banho demorado na alma. O piloto automático da rotina faz a gente mal acordar e ser engolida pelas horas, assim quando menos se espera já estamos colocando o pijama novamente e indo dormir. E amanhã é um novo dia que vai começar tudo de novo. Graças a Deus!

E nessa ampulheta diária Maria percebeu meio que sem querer que fazia um tempo que não ia ao porão de sua casa. O fato da entrada ser externa pela lateral fazia com que simplesmente se esquecesse de sua existência, mas há algum tempo sonhou que estava reformando tudo por lá. Sentia vontade de fazer um cantinho especial para filmes, séries, leitura, um espaço para trabalhar a sua criatividade e convidar amigos e familiares.

Sonhou com uma parede na cor telha, uma mesa de madeira clara com cadeiras de forro colorido e sofá bege. Na estante muitos livros e discos de vinil, pois nem uma modernidade por melhor que seja tem aquele som que a agulha deslizando no vinil traz. E se tem vinil tem que ter aquela vitrola de causar inveja em qualquer atualidade.

Amanhã eu passo por lá para ver qual é o estado e me armar de inseticida porque deve ter aranha e barata., pensou com certa vergonha, pois se ouvissem seus pensamentos iriam chamá-la de porca. E mais uma vez o que podia ser feito hoje ela deixou para amanhã, postergando uma ação que apenas uma olhadela gastaria de seu tempo segundos, talvez minutos. Nada que não perdesse indo de um lugar a outro, por exemplo. 

E foi assim que amanhã virou dias, semanas e voltou a sonhar como se fosse um chamamento seis meses depois do que tinha prometido a si mesma fazer. Levantou da cama sobressaltada e quase que vai lá fora olhar agorinha mesmo, mas lembrou que os vizinhos poderiam confundi-la com alma penada diante do seu estado, descabelada, amassada, remelenta e com hálito que não era de Halls. “Não, melhor não, vou tomar um banho e vou.”, ela pensou. 

Quando saía do banho escutou longe seu celular tocar, enrolou-se na toalha e foi atender.

— Dona Maria?

— Sim. Quem deseja?

— Aqui é da loja que a senhora deixou ontem seu secador de cabelo, estamos ligando para avisar que ficou pronto. Funcionamos até às 17h, mas hoje vamos fechar mais cedo porque a mãe da dona faleceu e só ficaremos mais uma hora abertos. A senhora vem ainda hoje ou vai deixar para amanhã?

— Hoje. Ficar sem secador de cabelo é caso de vida ou morte, vou me arrumar e chego já aí.

E assim a visita ao porão ficou mais uma vez para sei lá quando. Antes ela tivesse ido ao porão sem banho mesmo. 

***

O Natal já estava batendo na porta e foi ao entrar em uma loja e se deparar a um espelho que ela se lembrou que o ano passou voando e aquela ideia de ir olhar o porão ficou lá no mês de abril. O espelho da loja ligou o alerta de que ela não estava conseguindo viver sem o piloto automático. Um espelho novo a lembrou do espelho velho esquecido no porão enrolado em um lençol que já não deveria nem proteger mais. “É hoje! Assim que eu chegar em casa eu vou.”.

Maria não parava de pensar no caminho pra casa nessa sua mania de postergar as coisas que não faziam parte de sua obrigação e com isso ela sabia que tudo que podia deixar para amanhã virou um vício do qual ela precisava se esforçar muito para não fazer. E assim ela lembrou que tinha que ir ao mercado antes de chegar em casa. 

Enquanto escolhia as batatas para o gnocchi da noite se lembrou de novo do porão, olhou para a porta do supermercado e viu que já anoitecia, e mais uma vez se conhecendo bem sabia que deixaria a visita para amanhã. E de novo foi engolida pelos afazeres domésticos, família, internet, ligações, noite, sonhos.

***

— Alô!

— Oi, tia! Tudo bem?

— Oi, meu amor. Tudo bem e com você?

— Tudo bem também. Tia, quero passar o Natal com a senhora. Posso comprar minha passagem?

— Claaaaaaaaaro, sobrinha. Vem quando?

— Amanhã. 

— Nossa, que rápido! Está grávida e quer me contar, Júlia?!

— Claro que não tia, mas que coisa. Eu e Júlio nem casamos ainda, vamos ficar noivos no Réveillon, mas não vou atropelar as fases. Eu quero me despedir da senhora porque vou morar longe e quero matar a saudade, ver filme, conversar, comer pipoca e ver fotos antigas.

— Acho bom mesmo a mocinha fazer tudo isso com sua pobre tia já cheia de saudade. Agora sobre as fotos... estão no porão.

— Que até hoje a senhora não abriu para ver se já tem uma comunidade de múmia lá dentro.

Maria deu muita risada da fala da sobrinha.

— Por aí.

— Então preciso levar que arma para matar as múmias?

— Apenas a boa vontade de encontrar muita poeira e coisas velhas.

— Combinado. Mando mensagem depois avisando a hora que chego. Beijo, tia. Te amo.

— Beijo, meu amor. Amo mais.

E lá vem esse porão de novo.... Maria desligou a ligação e largou tudo seguindo enfim ao porão. E quando chegou lá se lembrou que havia deixado para trás, desde que sua mãe morrera, lembranças afetivas que ficaram guardadas na gaveta do coração.

Conforme ela ia tirando os lençóis de cima dos móveis, das caixas, e do espelho, seus olhos iam se descortinando para a analogia que existe entre o porão e a vida, que às vezes fica assim mesmo, cheia de poeira e teias de aranha. O cheiro de mofo e os tufos de poeira pelo chão exigiam uma faxina pra ontem, mas foi quando se olhou no espelho esquecido no porão que percebeu que era ela quem precisava de uma faxina. 

Largou o porão mais uma vez, mas dessa vez a volta seria rápida, era só o tempo de pegar a vassoura e os produtos de limpeza na despensa e faxinar primeiro o porão e depois a si mesma. Rapidinho varreu tudo, passou pano no chão e móveis, mas realmente estava tudo muito velho precisando de um up no visual. Agora era chegada a hora de sua própria faxina. Pegou uma cadeira que estava no canto, olhou para garantir não estar quebrada e se sentou em frente ao espelho.

— Espelho, espelho meu, existe alguém mais bonita que eu?

E deu risada, mas riu tanto que chegou a chorar e quando percebeu estava mesmo chorando de verdade enquanto se olhava. Uma mistura de sentimentos varreu seus olhos. Nesta hora Maria percebeu o quanto se deixou para trás. O quanto priorizou os outros e as coisas e se esqueceu de si. Ela olhou seus cabelos, sua pele, as unhas, os dentes, mas o que chamou a atenção mesmo foram os olhos. Cansados, é verdade, mas o que a prendeu naquela visão era o que ela via por trás dos seus olhos. Na janela da alma. No tanto que ela venceu e perdeu. No tanto que derrapou e se ergueu. No tanto que era forte. 

Dinheiro nunca foi um problema para ela, então reformar o porão seria moleza, o mais difícil era se perdoar, era mudar o que estava enraizado dentro dela, era recomeçar. Justo ela que já recomeçou tantas vezes na vida, fosse no profissional ou no amor, mas agora se sentia sem forças, cansada. Pegou o espanador e espanou sua cabeça, na intenção de jogar pra longe o desânimo que começava a querer fazer morada. 

 E de repente viu que tudo estava limpo, ainda velho, mas agora brilhando. Encontrou as caixas com as fotos, pegou e se preparou para descer, pois já iria arrumá-las para poder curtir com Júlia quando ela chegasse, só que antes resolveu dar mais uma olhada no espelho.

 — Maria, Maria! Obrigada por tudo até aqui. Por todas as vezes que segurou a minha mão me lembrando que eu não estava sozinha. Obrigada por conseguir dar colo para a Maria criança, direcionar a Maria adolescente, e dar segurança a Maria adulta. Agora vamos dar dignidade a Maria idosa, mas caso a dignidade passe longe, que sua alma não se esqueça que você tem o mesmo nome que a mãe de Jesus. 

 E assim se benzeu. Deu um beijo em seu dedo e encostou na testa da Maria no espelho.

 — Que a gente fique com Deus. E que nunca mais eu deixe para amanhã o que posso fazer hoje.

 E saiu toda serelepe e disposta a preparar as fotos e a casa para receber sua sobrinha.

 

*direitos autorais do texto protegidos*


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Oi, meus queridos.

O post de hoje é ficção, mas o anterior foi verdadeiro. 

Obrigada a todos que deixaram seu carinho.

Chego daqui a pouco por aí. 

Beijo, beijo! ❤  

sexta-feira, 5 de abril de 2024

VOCÊ É A SAUDADE DO QUE NÃO VIVI

 


Este mês faz 22 anos que sinto saudade do que não vivi. Saudade esta que já passou por várias fases e nuances, ora doendo demais, ora me fazendo aceitar que as coisas são como são. Perder um filho, seja na condição que for, nunca é fácil. Meu bebê não tinha cérebro e tudo que veio com essa notícia não foi fácil resolver e digerir, e desde então eu peço perdão e aceito que ainda que não tenha culpa ser mãe é sentir culpa. Aliás, na hora do resultado positivo parece que já gruda em nós essa tal de culpa. É uma coisa louca essa dinâmica.

Não tem um dia que eu não faça uma oração para o meu bebê, hoje não dói mais, mas sangrou muito no passado. O ser humano não tem saudade do que não conhece e não viveu, mas uma mãe que perde um filho convive sim com a saudade do que não viveu, não tem jeito.

Não tive outros filhos. A vida foi percorrendo caminhos que foram me afastando desse sonho, mas nunca deixei de ser mãe. Uma vez mãe sempre mãe. Sei que meu amor está bem na nova morada, daqui eu sigo minha caminhada vivendo da melhor forma que uma mãe em luto possa viver e, embora eu nunca vá deixar de ser mãe desse anjinho, exerço a maternidade de outros jeitos, por exemplo, parindo livros. E como todo escritor coloca algo de si nas suas histórias, o miniconto "Mãe, brinca comigo?" é todinho pra ele. Pretendo escrever mais para o meu amor, mas o que quero mesmo é um abraço dele quando chegar a hora desse encontro, que espero que ele tenha muita paciência porque mamãe aqui tem muito que viver na Terra. 

Meu carinho às mulheres que são mães de anjos. Nem sempre a gente vai entender o porquê de tudo, mas sim é importante ter em mente que tudo nesta nossa existência tem uma razão de ser. Mãe é uma palavra doce que não cheguei a ouvir, mas ainda assim ser mãe faz sorrir minha alma e meu coração. Imagino como teria sido porque a cabeça da escritora não para, mas aceito como as coisas são. Na minha fanfic¹ eu brinco com ele, leio histórias, converso, imagino até nós dois sentados em um banco de parque de mãos dadas falando da vida, trocando figurinhas no passar do tempo com ele criança, adolescente, adulto...

Deus melhor do que eu sabe tudo como foi, as consequências de nossas escolhas e erros, e a consequência que Ele tem reservada pra gente em qualquer situação, o importante é ficar bem, e estou bem, mas o mês de abril nunca mais foi apenas mais um mês do calendário. Ressignificar o luto é uma ação que exige muito da gente, mas vale a pena, porque a vida continua e precisa mesmo continuar. 

Hoje não posso mais ser mãe de forma natural, e antes eu já tinha decidido que não queria mais, e sempre que uma mulher diz que não quer ser mãe ela é julgada sem dó pelos justiceiros de plantão da vida alheia. Julgamentos sem fim é o assunto do meu próximo post. Assim que der visito vocês e respondo aos comentários carinhosos do post anterior.

Beijo, beijo ❤

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¹ Fanfic é história ficcional criada por fãs baseada em personagens e histórias de filmes, livros, série, HQ, músicas, videogames, mangás, animes, celebridades, etc.



segunda-feira, 25 de março de 2024

O ELA QUE MORA EM MIM

Encontro com a amiga Roselia Bezerra

Quando comecei na blogosgera em 2008, como já contei em outro post, eu estava atravessando um dos momentos mais difíceis da minha vida. Em 2003, eu sofri um grave acidente de carro e fui obrigada a parar tudo, ações, projetos, sonhos e recalcular a rota. O foco era, e deveria ser, a minha saúde, a minha recuperação.

Caí dentro de um canal com um carro que eu era carona aqui no Rio de Janeiro, e tive fraturas múltiplas no pulso, mão e dedo, foi uma batalha, mas que no final eu venci a guerra. Com sequelas, traumas, mudanças na vida, mas inteira, graças a Deus. Olhar para trás mostra que tudo poderia ter sido muito pior, inclusive eu poderia muito bem estar agora em outro plano, já que foram 15 dias de hospital devido a uma séria infecção por causa do esgoto no canal.

Olhar para trás, e para esse dia, não dói mais e nem causa desconforto, apenas me mostra a força que eu tenho, e não serei humilde em reconhecer o meu poder e força porque só eu sei o grau de dificuldade que foi enfrentar as fraturas, as queimaduras, a possibilidade de perder a mão, que também consegui vencer, o quão difícil foi perder os movimentos da mão e do braço, os dois anos de fisioterapia para reaprender a usar a mão e avisar ao meu cérebro que ele precisava novamente mandar os comandos para eu voltar a usar mão e braço direito. Ontem eu era destra, durante virei canhota, e hoje eu sou ambidestra para muitas coisas. Ter que escolher rapidamente o lado direito e esquerdo, confesso que meu cérebro dá uma parada para pensar (risos).

E durante a recuperação surgiu a necessidade de escrever, algo que sempre fez parte de mim, por isso fui fazer jornalismo e já tinha escrito o meu primeiro livro, mas eu queria um cantinho para isso no computador e internet, mas não conhecia a blogosfera que me foi apresentada por amigas. Achado o local de escrita me faltava um nome para ele. E foi aí que o Cantinho She surgiu e durou de 2008 a 2015. She de Sheila, o meu nome, mas também de ela, de feminino, de mulher, de sagrado. Como já falei antes, eu amo o feminino que mora em mim, então eu não poderia ser nada além de She.

Quando decidi voltar ao mundo dos blogs, continuava sendo a She, mas não mais o Cantinho She, embora eu tenha um carinho muito especial por esta época onde conheci pessoas maravilhosas que levo para a minha vida, muitas, inclusive, estão na minha vida pessoal. As fotos que ilustram este post são de nossa primeira desvirtualização no Paço Imperial aqui no Rio de Janeiro, no qual foi lindo a gente poder abraçar várias amigas que tínhamos conexão na blogosfera. E foi uma oportunidade também de fazer uma comemoração com o meu primeiro livro "Cabra-Cega", já que a blogosfera tanto me ajudou na divulgação e também votando para que eu fosse a finalista no Concurso Literário do Clube de Autores em 2011, do qual consegui na segunda fase com os jurados um lindo terceiro lugar, quase empatado com o segundo.

É uma caminhada da qual me orgulho sim, mas o tema de hoje veio a minha cabeça depois que li o comentário fofo, e que eu amei, da querida RÔ - MEU DIÁRIO, e também para explicar aos amigos de outros países que sou She de Sheila, mas muito She de ELA, She de FEMININO, She de MULHER. Seja do jeito que for que você me leia ou me veja o importante é ficar à vontade por aqui e meus textos serem um caminho de paz para o seu dia, ou de reflexão. 

Beijo, beijo!