O corre-corre diário faz as pessoas se esquecerem muitas vezes de olhar internamente, de dar aquele banho demorado na alma. O piloto automático da rotina faz a gente mal acordar e ser engolida pelas horas, assim quando menos se espera já estamos colocando o pijama novamente e indo dormir. E amanhã é um novo dia que vai começar tudo de novo. Graças a Deus!
E nessa ampulheta diária Maria percebeu meio que sem querer que fazia um
tempo que não ia ao porão de sua casa. O fato da entrada ser externa pela
lateral fazia com que simplesmente se esquecesse de sua existência, mas há
algum tempo sonhou que estava reformando tudo por lá. Sentia vontade de fazer
um cantinho especial para filmes, séries, leitura, um espaço para trabalhar a
sua criatividade e convidar amigos e familiares.
Sonhou com uma parede na cor telha, uma mesa de madeira clara com
cadeiras de forro colorido e sofá bege. Na estante muitos livros e discos de
vinil, pois nem uma modernidade por melhor que seja tem aquele som que a agulha
deslizando no vinil traz. E se tem vinil tem que ter aquela vitrola de causar
inveja em qualquer atualidade.
“Amanhã eu passo por lá para ver qual é o
estado e me armar de inseticida porque deve ter aranha e barata.”, pensou com certa
vergonha, pois se ouvissem seus pensamentos iriam chamá-la de porca. E mais uma
vez o que podia ser feito hoje ela deixou para amanhã, postergando uma ação que
apenas uma olhadela gastaria de seu tempo segundos, talvez minutos. Nada que
não perdesse indo de um lugar a outro, por exemplo.
E foi assim que amanhã virou dias, semanas e voltou a sonhar como se
fosse um chamamento seis meses depois do que tinha prometido a si mesma fazer.
Levantou da cama sobressaltada e quase que vai lá fora olhar agorinha mesmo,
mas lembrou que os vizinhos poderiam confundi-la com alma penada diante do seu
estado, descabelada, amassada, remelenta e com hálito que não era de Halls. “Não,
melhor não, vou tomar um banho e vou.”,
ela pensou.
Quando saía do banho escutou longe seu celular tocar, enrolou-se na
toalha e foi atender.
— Dona Maria?
— Sim. Quem deseja?
— Aqui é da loja que a senhora deixou ontem seu secador de
cabelo, estamos ligando para avisar que ficou pronto. Funcionamos até às 17h,
mas hoje vamos fechar mais cedo porque a mãe da dona faleceu e só ficaremos
mais uma hora abertos. A senhora vem ainda hoje ou vai deixar para amanhã?
— Hoje. Ficar sem secador de cabelo é caso de vida ou morte, vou me
arrumar e chego já aí.
E assim a visita ao porão ficou mais uma vez para sei lá quando. Antes
ela tivesse ido ao porão sem banho mesmo.
***
O Natal já estava batendo na porta e foi ao entrar em uma loja e se
deparar a um espelho que ela se lembrou que o ano passou voando e aquela ideia
de ir olhar o porão ficou lá no mês de abril. O espelho da loja ligou o alerta
de que ela não estava conseguindo viver sem o piloto automático. Um espelho
novo a lembrou do espelho velho esquecido no porão enrolado em um lençol que já
não deveria nem proteger mais. “É hoje! Assim que eu chegar em casa eu
vou.”.
Maria não parava de pensar no caminho pra casa nessa sua mania de
postergar as coisas que não faziam parte de sua obrigação e com isso ela sabia
que tudo que podia deixar para amanhã virou um vício do qual ela precisava se
esforçar muito para não fazer. E assim ela lembrou que tinha que ir ao mercado
antes de chegar em casa.
Enquanto escolhia as batatas para o gnocchi da noite se lembrou de novo
do porão, olhou para a porta do supermercado e viu que já anoitecia, e mais uma
vez se conhecendo bem sabia que deixaria a visita para amanhã. E de novo foi engolida pelos afazeres domésticos, família, internet, ligações, noite,
sonhos.
***
— Alô!
— Oi, tia! Tudo bem?
— Oi, meu amor. Tudo bem e com você?
— Tudo bem também. Tia, quero passar o Natal com a senhora.
Posso comprar minha passagem?
— Claaaaaaaaaro, sobrinha. Vem quando?
— Amanhã.
— Nossa, que rápido! Está grávida e quer me contar, Júlia?!
— Claro que não tia, mas que coisa. Eu e Júlio nem casamos
ainda, vamos ficar noivos no Réveillon, mas não vou atropelar as fases. Eu
quero me despedir da senhora porque vou morar longe e quero matar a saudade, ver
filme, conversar, comer pipoca e ver fotos antigas.
— Acho bom mesmo a mocinha fazer tudo isso com sua pobre tia já cheia de
saudade. Agora sobre as fotos... estão no porão.
— Que até hoje a senhora não abriu para ver se já tem uma
comunidade de múmia lá dentro.
Maria deu muita risada da fala da sobrinha.
— Por aí.
— Então preciso levar que arma para matar as múmias?
— Apenas a boa vontade de encontrar muita poeira e coisas velhas.
— Combinado. Mando mensagem depois avisando a hora que chego.
Beijo, tia. Te amo.
— Beijo, meu amor. Amo mais.
“E lá vem esse porão de novo...”. Maria desligou a
ligação e largou tudo seguindo enfim ao porão. E quando chegou lá se lembrou
que havia deixado para trás, desde que sua mãe morrera, lembranças afetivas que
ficaram guardadas na gaveta do coração.
Conforme ela ia tirando os lençóis de cima dos móveis, das caixas, e do
espelho, seus olhos iam se descortinando para a analogia que existe entre o
porão e a vida, que às vezes fica assim mesmo, cheia de poeira e teias de
aranha. O cheiro de mofo e os tufos de poeira pelo chão exigiam uma faxina pra
ontem, mas foi quando se olhou no espelho esquecido no porão que percebeu que
era ela quem precisava de uma faxina.
Largou o porão mais uma vez, mas dessa vez a volta seria rápida, era só
o tempo de pegar a vassoura e os produtos de limpeza na despensa e faxinar
primeiro o porão e depois a si mesma. Rapidinho varreu tudo, passou pano no
chão e móveis, mas realmente estava tudo muito velho precisando de
um up no visual. Agora era chegada a hora de sua própria
faxina. Pegou uma cadeira que estava no canto, olhou para garantir não estar
quebrada e se sentou em frente ao espelho.
— Espelho, espelho meu, existe alguém mais bonita que eu?
E deu risada, mas riu tanto que chegou a chorar e quando percebeu estava
mesmo chorando de verdade enquanto se olhava. Uma mistura de sentimentos varreu
seus olhos. Nesta hora Maria percebeu o quanto se deixou para trás. O quanto
priorizou os outros e as coisas e se esqueceu de si. Ela olhou seus cabelos,
sua pele, as unhas, os dentes, mas o que chamou a atenção mesmo foram os olhos.
Cansados, é verdade, mas o que a prendeu naquela visão era o que ela via por
trás dos seus olhos. Na janela da alma. No tanto que ela venceu e perdeu. No
tanto que derrapou e se ergueu. No tanto que era forte.
Dinheiro nunca foi um problema para ela, então reformar o porão seria
moleza, o mais difícil era se perdoar, era mudar o que estava enraizado dentro
dela, era recomeçar. Justo ela que já recomeçou tantas vezes na vida, fosse no
profissional ou no amor, mas agora se sentia sem forças, cansada. Pegou o
espanador e espanou sua cabeça, na intenção de jogar pra longe o desânimo que
começava a querer fazer morada.
E de repente viu que tudo estava limpo, ainda velho, mas agora
brilhando. Encontrou as caixas com as fotos, pegou e se preparou para descer,
pois já iria arrumá-las para poder curtir com Júlia quando ela chegasse, só que
antes resolveu dar mais uma olhada no espelho.
— Maria, Maria! Obrigada por tudo até aqui. Por todas as vezes que
segurou a minha mão me lembrando que eu não estava sozinha. Obrigada por
conseguir dar colo para a Maria criança, direcionar a Maria adolescente, e dar
segurança a Maria adulta. Agora vamos dar dignidade a Maria idosa, mas caso a
dignidade passe longe, que sua alma não se esqueça que você tem o mesmo nome
que a mãe de Jesus.
E assim se benzeu. Deu um beijo em seu dedo e encostou na testa da
Maria no espelho.
— Que a gente fique com Deus. E que nunca mais eu deixe para
amanhã o que posso fazer hoje.
E saiu toda serelepe e disposta a preparar as fotos e a casa para
receber sua sobrinha.
*direitos autorais do texto protegidos*
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Oi, meus queridos.
O post de hoje é ficção, mas o anterior foi verdadeiro.
Obrigada a todos que deixaram seu carinho.
Chego daqui a pouco por aí.
Beijo, beijo! ❤